Liberado o primeiro capítulo da sequência de "A Fúria e a Aurora", de Renée Ahdieh
By Helen Martins - 12/14/2016 10:00:00 AM
A editora Globo Alt divulgou um
trecho de "A Rosa e a Adaga", romance de Renée Ahdieh.
O livro, sequência de "A
Fúria e a Aurora", tem o lançamento previsto para janeiro de 2017,e abaixo
você pode ver a capa e a sinopse traduzida e o trecho divulgado pela editora.
Leia o primeiro capítulo
Quanto mais escuro o céu, mais brilhantes as estrelas.
Em uma terra à beira da guerra, Sherazade é forçada a deixar os braços de seu amado marido, o califa de Khorasan. Ela uma vez pensou que Khalid fosse um monstro - um impiedoso assassino de esposas, responsável por imensuráveis mágoas e dor - mas conforme desvendou seus segredos, ela descobriu um homem extraordinário e um amor que ela não podia negar. Ainda assim, uma maldição ameaça manter Shazi e Khalid separados para sempre.
Agora ela se reuniu com sua família, que encontrou refúgio no deserto, onde uma força mortal está se reunindo contra Khalid - uma força criada para destruir seu império e comandada pelo amor de infância desprezado por Shazi. Presa entre a lealdade àqueles que ama, a única coisa que Shazi pode fazer é agir. Usando a magia emergente dentro dela como um guia, ela atacará por conta própria para acabar com esta terrível maldição e com a guerra de uma vez por todas. Mas para fazê-lo, ela deve fugir inimigos em meio a sua própria gente para permanecer viva.
A saga que começou com "A Fúria e a Aurora" leva sua última aventura enquanto Sherazade arrisca tudo para encontrar o seu caminho de volta para seu único e amor verdadeiro.
1º CAPÍTULO
A ÁGUA REPOUSA
Era apenas um anel. Mas significava muito para ela.
Muito a perder. Muito pelo que lutar.
Sherazade elevou a mão para um raio de sol. O anel de um dourado polido faiscou
duas vezes, como que para lembrá-la de seu par, longe, do outro lado do
Mar de Areia.
Khalid.
Seus pensamentos vagaram até o palácio de mármore em Rey. Até Khalid. Ela esperava
que ele estivesse com Jalal ou com o tio, o shahrban. Ela rezava para que ele
não estivesse sozinho. Vagando. A esmo.
Por que não estou com ele?
Apertou os lábios.
Porque, da última vez que estive em Rey, milhares de pessoas inocentes
morreram.
E Sherazade não poderia retornar até que encontrasse uma maneira de proteger
seu povo. Seu amado. Uma maneira de pôr fim à terrível maldição de Khalid.
Do lado de fora de sua tenda, um bode começou a balir, feliz. Com a raiva se
acumulando, Sherazade jogou longe seu cobertor e pegou a adaga ao lado do
colchão. Uma ameaça vazia, mas ela sabia que devia ao menos lutar por uma
aparência de tranquilidade. Como para troçar dela, os barulhos além de sua
tenda ficaram mais fortes e incessantes.
O que é isso... um sino?
A pequena besta do lado de fora da tenda tinha um sino no pescoço! Agora o sino
e os berros do bode asseguravam a impossibilidade de ela continuar dormindo.
Sherazade sentou, segurando o cabo cravejado da adaga... Então, com um grito
exasperado, deixou-se cair novamente no colchão piniquento.
Não que eu estivesse conseguindo dormir.
Não quando estava tão longe de casa. Tão longe de onde seu coração gostaria de
estar. Ela engoliu imediatamente o nó que se instalou na garganta. Seu polegar
roçou o anel com as duas espadas cruzadas — o anel que Khalid colocara em sua
mão direita havia apenas quinze dias.
Chega! Isso não vai levar a nada.
Ela tornou a sentar, seus olhos avaliando o entorno. O colchão de Irsa estava
dobrado e guardado com cuidado de um lado da pequena tenda. Parecia que sua
irmã mais nova já estava acordada havia horas, assando pão, fazendo chá e
trançando a barbicha do bode.
Sherazade quase sorriu, apesar de tudo.
Com a desconfiança se avolumando na penumbra, ela enfiou a adaga na faixa da
cintura, depois se esticou até os pés. Todos os músculos do corpo doíam dos
dias da difícil viagem e das noites maldormidas. Três noites de preocupação.
Três noites de fuga de uma cidade em chamas. Uma fonte infinita de perguntas
sem resposta. Aquelas três longas noites de preocupação com seu pai, cujo corpo
maltratado ainda precisava se recuperar dos danos infligidos pelo que
acontecera nos morros fora de Rey.
Sherazade respirou fundo. O ar ali era estranho. Mais seco. Mais frio. A luz
suave entravaem barras pelas frestas da tenda. Uma fina camada de poeira
grudava em tudo. E fazia seu diminuto mundo parecer como que pintado pela
poeira escura de diamante. De um lado da tenda, havia uma pequena mesa com uma
jarra de porcelana e uma bacia de cobre. Os parcos pertences de Sherazade
estavam dispostos ao lado, enrolados no tapete desgastado que Musa Zaragoza lhe
dera havia muitos meses. Ela se ajoelhou diante da mesa e encheu a bacia de
água para se lavar.
A água estava tépida, porém clara. Seu reflexo parecia estranhamente calmo ao
olhar de volta para ela. Calmo, mas distorcido. O rosto de uma garota que
perdeu tudo e nada em uma única noite. Ela mergulhou as mãos na água. Sua pele
parecia pálida e suave abaixo da superfície. Não sua habitual coloração bronzeada.
Ela fixou o olhar onde a água encontrava o ar, na estranha curva que fazia
parecer que suas mãos estavam em um outro mundo sob a água...Um mundo que se
movia mais devagar e contava histórias.
A água repousa.
Ela jogou um pouco da água no rosto e passou os dedos úmidos por entre os
cabelos. Então levantou a pequena tampa da caixa de madeira próxima e pegou uma
pitada de hortelã, pimenta-branca e sal de rocha moído para tirar o gosto de
sono da boca. — Você está acordada! Depois que você chegou tão tarde ontem à
noite, não pensei que fosse acordar tão cedo. Sherazade se virou para ver Irsa
de pé na entrada da tenda. Um triângulo da luz do deserto emoldurava a silhueta
delicada de sua irmã.
Irsa sorriu, sua silhueta esguia entrando em foco.
— Você não costumava acordar para tomar café. — Ela entrou na tenda,
certificando-se de que ficara fechada atrás de si.
— Quem pode dormir com um bode maldito berrando do lado de fora? — Sherazade
salpicou água em Irsa para distraí-la de seu inevitável interrogatório.
— Você está falando do Farbod?
— Você batizou a pequena besta? — Sherazade sorriu enquanto começava a juntar
as ondas do cabelo em uma trança.
— Ele é bem dócil. — Irsa franziu a testa. — Você precisa dar uma chance a ele.
— Por favor, avise a Farbod que, se ele insistir em fazer recitais matinais, a
minha refeição favorita passará a ser bode assado, servido com molho de romã e
nozes picadas.
— Ha! — Irsa tirou uma fita comprida do bolso da sirwal. — Suponho que não
devemos nos esquecer que estamos diante da realeza. — Ela amarrou a ponta da
trança de Sherazade com a fita. — Vou avisar a Farbod que não deve mais ofender
a ilustre califa de Khorasan.
Sherazade olhou por cima do ombro para os olhos pálidos de Irsa.
— Você ficou tão alta! — ela falou baixinho. — Quando ficou tão alta?
Irsa envolveu a cintura da irmã com os dois braços.
— Senti saudades suas. — A ponta de seus dedos tocou o punho da adaga, e ela
recolheu os braços assustada. — Por que está usando...
— O baba já acordou? — Sherazade sorriu de forma esfuziante. — Pode me levar
para vê-lo?
Na noite da tempestade, Sherazade fora com Tariq e Rahim até o topo das colinas
próximas de Rey, em busca do pai. Ela não estava preparada para o que
encontraram. Jahandar al-Khayzuran estava abraçado a um velho livro encadernado
em couro.
Seus pés descalços e suas mãos estavam queimados. Vermelhos, esfolados e em
carne viva. Os cabelos caindo em tufos. A chuva os juntara na lama, esmagando
os fios contra a pedra molhada, como acontece com tantas coisas descartadas.
O cavalo malhado da irmã estava morto havia tempo. A garganta cortada. O
sangue, que saíra da ferida em seu pescoço, secara em veios. Veios de lama e
cinzas se juntavam ao carmim para formar um rendilhado sinistro na encosta da
colina.
Sherazade não esqueceria jamais a imagem do corpo de seu pai encolhido contra a
encosta vermelha e cinza. Quando tentou soltar os dedos de Jahandar do livro,
ele gritara em uma língua que ela nunca tinha ouvido ele falar antes. Seus
olhos reviraram e suas pálpebras se fecharam, para não mais se abrirem, nem uma
única vez nos últimos quatro dias. E, até que se abrissem, Sherazade se
recusava a deixá-lo. Ela precisava saber que seu pai estava a salvo. Precisava
saber o que ele havia feito. Não importava o que, ou quem, ela tivesse deixado
para trás em Rey.
— Baba? — Sherazade disse baixinho, ao se ajoelhar ao lado dele em sua pequena
tenda.
Ele estremeceu em seu sono, os dedos apertando mais forte o livro agarrado em
seus braços. Mesmo em seu delírio, Jahandar se recusara a soltar o livro. Nem
uma alma havia conseguido lhe tirar o livro. Irsa suspirou. Parou ao lado de
Sherazade e lhe entregou um copo de água. Sherazade levou o copo aos lábios
rachados do pai. Aguardou até sentir que ele engolia. Ele murmurou algo e se
virou de lado, enfiando o livro ainda mais fundo entre as cobertas.
— O que pôs nisso? — Sherazade perguntou a Irsa. — Cheira bem.
— Apenas hortelã fresca e mel. Além de um pouco de ervas de chá e leite. Você
disse que ele não comeu nada há alguns dias. Achei que podia ajudar. — Irsa deu
de ombros.
— É uma boa ideia. Eu devia ter pensado nisso.
— Não se culpe. Não lhe cai bem. E... você já fez mais do que o necessário. —
Irsa falou com uma sabedoria além dos seus catorze anos.
— Baba vai acordar logo. Tenho certeza. — Ela mordeu o lábio, sua voz sem
convicção. — É preciso ter calma para curar as feridas dele. E tempo.
Sherazade ficou calada, estudando as mãos do pai. As queimaduras tinham feito
bolhas além dos roxos e dos vermelhos vivos.
O que será que ele fez na noite da tempestade?
O que fizemos?
— Você deve comer. Não comeu quase nada quando chegou ontem à noite. — Irsa
interrompeu os pensamentos de Sherazade.
Antes que pudesse protestar, Irsa tirou o copo das mãos de Sherazade, içando-a
e arrastando-a para as dunas além da tenda do pai. O aroma de carne assando
impregnara o ar do deserto, a fumaça acima delas era uma nuvem disforme. Grãos
finos de areia passaram por entre os dedos dos pés de Sherazade, quase quentes
demais para aguentar. Os raios intensos de sol desfocavam tudo o que tocavam.
Enquanto caminhavam, Sherazade olhou em volta do acampamento Badawi com os
olhos estreitados, estudando a azáfama da maioria dos rostos risonhos; pessoas
carregando sacas de grão e embrulhos de mercadorias de um canto para o outro.
As crianças pareciam bem contentes, apesar de ser impossível ignorar o
armamento reluzente, as espadas, os machados e as flechas, dispostos na sombra
das peles de animais. Impossível ignorá-los e o seu significado
impronunciável...
Preparativos para a guerra que se aproximava. E lhe subtrairei essas vidas,
milhares de vezes... Sherazade se endireitou, pôs os ombros para trás,
recusando-se a sobrecarregar a irmã com esses problemas. Tais problemas eram
destinados àqueles com habilidades únicas.
Como Musa Zaragoza, o mago do Templo de Fogo. Com muito esforço, Sherazade
tirou o peso interminável da maldição de seus ombros. Andou com Irsa através do
círculo de tendas em direção à maior delas, ao centro. Era uma construção
impressionante, apesar de feita de retalhos: uma miscelânea de cores desbotadas
pelo sol, um galhardete pálido no topo, flamulando na brisa. Uma sentinela
encapuzada numa capa de linho guardava a entrada da tenda.
— Sem armas. — A mão do soldado segurou o ombro de Sherazade, com a força de
quem gosta de seu papel bem mais do que deveria.
Apesar de normalmente pensar antes de agir, a resposta de Sherazade foi
imediata e automática. Ela retirou a mão dele e fechou a cara. Não estou com
vontade de aguentar homens grosseiros. Ou sua belicosidade.
— Armas não são permitidas na tenda do xeque. — O soldado tentou pegar sua
adaga, os olhos com um velado brilho ameaçador.
— Toque em mim de novo, e eu...
— Shazi! — Irsa se adiantou, tentando apaziguar o soldado. — Por favor, perdoe
a minha...
O soldado empurrou Irsa. Sem pensar nem por um instante, Sherazade golpeou o
peito dele com os dois punhos. Ele cambaleou para o lado, as narinas dilatadas.
Atrás dela, homens começaram a gritar.
— O que está fazendo, Sherazade! — Irsa gritou, o choque com o feito impensado
da irmã estampado em seu rosto.
Enraivecido, o soldado segurou o antebraço de Sherazade. Ela se preparou para a
luta, os pés curvados e os punhos cerrados.
— Solte-a imediatamente! — Uma sombra alta caiu sobre o soldado.
Perfeito.
Sherazade estremeceu, uma pontada de arrependimento se misturando à sua fúria.
— Não preciso de sua ajuda, Tariq — ela falou entre dentes.
— Não estou ajudando você. — Ele chegou mais perto, lançou um olhar breve e
contido em sua direção. A dor tão aparente e vívida dele acabou com toda sua
coragem.
Será que ele algum dia me perdoará?
O soldado se virou para Tariq com uma deferência que, em circunstâncias
normais, teria irritado Sherazade imensamente.
— Perdão, sahib, mas ela se recusou a...
— Solte-a imediatamente! Não quero desculpas. Siga as ordens ou enfrente as
consequências, soldado.
O soldado a soltou com relutância. Sherazade afastou a mão dele com violência.
Respirou fundo e se preparou antes de olhar em volta. Rahim estava atrás de
Tariq; vários homens jovens estavam em seu lado oposto. Um era bem magrelo e
tinha o olhar de um homem bem mais velho. Sua barba crescia irregular no rosto
fino, e suas sobrancelhas de formato cômico emolduravam olhos gelados. Olhos
que a observavam com ódio abjeto. Os dedos dela se moveram para junto da adaga.
— Obrigada, Tariq — falou Irsa, uma vez que Sherazade ainda não demonstrara um
fiapo de gratidão.
— De nada — ele respondeu com um trejeito esquisito.
Sherazade mordiscou a própria bochecha.
— Eu...
— Não se preocupe, Shazi. Estamos além desse tipo de coisa. — Tariq jogou o
capuz de sua rida’ para trás e entrou na tenda, evitando estar por mais tempo
em sua companhia.
O rapaz de olhos gelados a fitou demoradamente antes de segui-lo. Rahim parou
por um instante a seu lado, a expressão séria, como se tivesse esperado algo
melhor dela. Ele então se aproximou de Irsa, inclinando a cabeça
inquisitivamente. Sua irmã lhe deu um meio sorriso. Suspirando levemente, Rahim
seguiu adiante e entrou na tenda, sem dizer uma palavra. Irsa deu uma
cotovelada nas costelas de Sherazade.
— O que há com você? — ela ralhou num sussurro. — Somos convidadas aqui. Você
não pode se comportar dessa forma.
Repreendida, Sherazade concordou secamente antes de atravessar o buraco
cavernoso. Levou algum tempo para se acostumar com a súbita escuridão. Uma
série de candeeiros de latão pendia em intervalos grandes das vigas do teto,
sua luz fraca e pálida diante do sol do deserto. No canto mais distante da
tenda, havia uma mesa baixa trabalhada em teca rugosa. Almofadas de lã bem
gastas estavam empilhadas aqui e ali. Crianças gritando passaram correndo por
Sherazade, focadas apenas na disputa pelo melhor lugar à mesa do café. Sentado
no centro desse tumulto enervante estava um homem mais velho, de olhar arguto e
barba desgrenhada. Quando viu Sherazade, sorriu para ela de forma surpreendentemente
amigável. À sua esquerda estava uma mulher de idade semelhante, com uma longa
trança entrelaçada com um fio de cobre. À sua direita estava o pai de Shiva,
Reza bin-Latief. O estômago de Sherazade se encolheu, sua culpa se fazendo
sentir novamente. Ela o vira na noite anterior, mas no clamor de sua chegada
seu contato havia sido breve, e ela não estava certa de já estar pronta para
encarar o pai de Shiva.
Tão pouco tempo depois de falhar em vingar a sua filha. Tão pouco tempo depois
de se apaixonar pelo mesmo rapaz que a assassinara. Decidindo que seria melhor
evitar chamar a atenção, Sherazade manteve a cabeça baixa e sentou-se na
almofada ao lado de Irsa, em frente a Tariq e Rahim. Ela evitou os olhares
daqueles que a cercavam, especialmente o do rapazola de olhar frio, que
aproveitava todas as oportunidades para fuzilá-la com o olhar. O desejo dele de
ostentar seu comportamento estava bem presente em sua mente, mas a repreensão
de Irsa continuava sendo verdadeira: ela era uma convidada aqui.
E não podia se comportar de maneira descuidada. Não podia arriscar o bem-estar
de sua família. Uma perna de cordeiro assada foi colocada no centro da mesa
gasta. Estava numa enorme salva de prata martelada, com inúmeras mossas
adquiridas pelo uso e pelo tempo. Fatias grossas de pão iraniano, passadas na
manteiga com sementes de gergelim cru, foram servidas em cestos, juntamente com
cuias lascadas de rabanetes e cubos de queijo de cabra salgado. Crianças
inquietas alcançaram os rabanetes e rasgaram o pão pela metade antes de pegar a
carne com as mãos. Os mais velhos amassaram galhos de hortelã fresca sobre as
folhas aromáticas, antes de servir rios de chá preto.
Quando Sherazade se arriscou a levantar os olhos, encontrou o velho de olhar
arguto observando-a, outro sorriso simpático formando-se em seus lábios. A
falha entre os dois dentes da frente era pronunciada, e olhando rápido parecia
que ele era tolo, ou quase. Mas Sherazade não se deixou enganar nem um pouco.
— Então, meu amigo... esta é Sherazade — disse o velho.
Com quem ele está falando?
— Eu estava certo... — O velho cacarejou. — Ela é muito bonita.
Os olhos de Sherazade percorreram os dois lados da mesa. E pararam em Tariq.
Seus ombros largos estavam contraídos; o queixo cinzelado estava rijo. Ele
expirou pelo nariz e olhou para ela.
— Ela é — Tariq concordou com a voz resignada.
O velho inclinou a cabeça para Sherazade.
— Você criou um bocado de problemas, lindeza.
Apesar da mão de Irsa sobre a sua, Sherazade sentiu a ira sendo atiçada como
carvão em brasa. Ciente de seu mau humor naquele momento, preferiu permanecer
calada. Enrolou a língua dentro da boca. E mordiscou o lábio inferior.
Sou uma convidada aqui. Não posso me comportar como gostaria. Não importa
quanto me sinta só ou com raiva.
O velho tornou a sorrir. Um sorriso maior. Ainda mais banguela. Enfurecedor.
— Você vale tudo isso?
Sherazade pigarreou.
— Desculpe? — falou, segurando com rédeas curtas as próprias emoções.
O rapaz do olhar gelado observava com a atenção de uma ave de rapina.
— Você vale tudo isso, lindeza? — repetiu o velho em uma cantilena
enlouquecedora.
Irsa envolveu os dedos de Sherazade num pedido mudo, suando frio e lhe alisando
a palma da mão. Sherazade não podia arriscar a segurança da irmã. Não num acampamento
cheio de incertezas. Desconhecidos que poderiam simplesmente largar a ela e à
sua família no deserto na primeira palavra errada. Ou lhe cortar o pescoço a um
olhar interpretado de maneira equivocada.
Não. Sherazade não podia pôr em perigo a saúde abalada de seu pai. Por nada
neste mundo.
Ela sorriu lentamente, a fim de ganhar tempo para domar sua fúria.
— Acredito que beleza raramente vale o trabalho. — Sherazade segurou a mão de
Irsa com força em solidariedade fraterna. — Mas tenho um valor maior do que
pode ver. — Seu tom de voz era suave, apesar da censura insinuada.
Sem hesitação, o velho jogou a cabeça para trás e riu.
— Com certeza! — Seu rosto estava iluminado de alegria. — Bem-vinda à minha
casa, Sherazade al-Khayzuran. Sou Omar al-Sadiq, e você é minha convidada.
Enquanto estiver em meu território, será sempre tratada como tal. Mas não se
esqueça: uma califa em seda ou uma pedinte nas ruas não faz diferença para mim.
Seja bem-vinda. —Ele fez uma profunda reverência e roçou a testa com a ponta
dos dedos com um grande floreio.
Sherazade suspirou aliviada, liberando a tensão dos ombros e do estômago.
Séria, retribuiu a reverência tocando a testa com a mão direita. O pai de Shiva
assistiu ao diálogo sem emoção, com os cotovelos apoiados na borda da mesa.
— Shazi jan... — começou com um tom pesaroso.
Ele a chamou quando ela pegava um pedaço de pão.
— Sim, tio Reza? — Ela levantou as sobrancelhas inquisitivamente, sua mão
pairando acima da cesta de pães. Com expressão pensativa, Reza prosseguiu:
— Estou muito contente que esteja aqui. Que esteja em segurança.
— Obrigada. Estou muito agradecida a todos por manter a minha família a salvo.
E por dispensar excelentes cuidados ao baba.
Ele concordou, depois se inclinou para a frente, colocando as mãos sob o
queixo.
— Claro. Sua família sempre foi a minha família. Como a minha sempre foi a sua.
— Sim — Sherazade falou baixinho. — Da mesma forma.
— Então — Reza falou com linhas de consternação vincando sua boca —, me dói
imensamente lhe dizer isso, porque pensei que talvez pudesse estar esquecida ao
chegar ontem à noite, mas já engoli seu insulto por mais tempo do que posso
aguentar.
O corpo todo de Sherazade congelou, sua mão ainda sobre a cesta de pães. A
tensão mais uma vez presente em seu corpo, a culpa lhe contorcendo o estômago
com a selvageria de cobras.
— Sherazade... — A voz de Reza bin-Latief perdera qualquer traço de gentileza;
toda a cordialidade desaparecera do homem que ela considerava seu segundo pai.
— Por que está sentada a esta mesa, dividindo o pão comigo, usando o anel do
rapaz que assassinou a minha filha?
Era uma acusação direta, cortante. Cortando através das pessoas ali presentes
como uma foice debastando um mar de grãos. Os dedos de Sherazade apertaram o
brasão das espadas cruzadas. O suficiente para causar dor. Ela piscou uma vez.
Novamente.
Tariq pigarreou. O som ecoou no súbito silêncio.
— Tio. Tio Reza...
Não. Ela não podia permitir que Tariq a salvasse. Não outra vez.
Nunca mais.
— Eu... eu sinto muito — ela falou, a boca seca.
Mas não sentia. Não por isso. Ela sentia por centenas de coisas.
Milhares delas.
Uma cidade inteira merecia desculpas. Mas ela nunca se desculparia por isso.
— Não se desculpe, Sherazade — Reza prosseguiu na mesma voz fria. A voz de um
estranho. — Decida.
Resmungando seu arrependimento, Sherazade se levantou.
Não parava de pensar. Agarrando-se ao que sobrou de sua dignidade, saiu da mesa
tropeçando, em direção ao sol escaldante do deserto. Suas sandálias se enchiam
de areia quente, golpeando sua panturrilha a cada passo.
Uma grande mão calejada segurou seu ombro, fazendo-a parar. Ela olhou para
cima, protegendo os olhos da luz cegante. O soldado. O que tinha histórico de
agressor.
— Saia do meu caminho — ela falou baixo, tentando controlar sua fúria. — Já.
Os lábios dele se curvaram para cima, com prazer carregado de maldade. E ele se
recusou a se mexer. Sherazade lhe agarrou o pulso para afastá-lo. O tecido
áspero de sua rida’ se enrolou até o cotovelo, revelando uma tatuagem no lado
interno de seu antebraço.
A marca do escaravelho. A marca dos assassinos de Fida’i que invadiram seus
aposentos em Rey e tentaram matá-la. Tomada de surpresa, Sherazade correu.
Desajeitada, sem pensar, seu único pensamento era fugir. Ao longe ela escutou a
voz de Irsa chamando por ela. Mesmo assim, se recusou a parar.
Correu para dentro de sua diminuta tenda, fechando o pano da entrada com força,
fazendo-o estalar. Sua respiração curta ressoava nas três paredes. Sherazade
levantou a mão direita e a colocou numa réstia de luz que entrava pela costura
da tenda. Viu como refletia o ouro pálido de seu anel. Não pertenço a este
lugar. Uma convidada numa prisão de sol e areia. Mas preciso manter minha
família a salvo. Preciso achar uma maneira de quebrar a maldição. E voltar para
casa, para Khalid.
Mas ela não sabia em quem confiar. Até que conhecesse melhor esse xeque Omar
al-Sadiq e soubesse por que um assassino da Fida’i se escondia em seu
acampamento, precisava permanecer alerta. Pois estava claro que Reza bin-Latief
não era seu aliado como já fora um dia. E Sherazade não queria preocupar Tariq.
Não era o papel dele manter a ela ou à sua família a salvo. Não. A obrigação
era dela, e apenas dela.
Seus olhos percorreram rapidamente o interior da tenda, até se fixar na água da
bacia de cobre. Viva sob a água. Movimente-se devagar. Conte histórias.
Minta.
Sem sentimentalismo, Sherazade arrancou o anel do dedo. Respire.
Ela fechou os olhos e escutou o grito mudo de seu coração.
— Aqui.
Irsa abriu a lona da porta e se aproximou de Sherazade. Não precisava que lhe
dissesse nada. E também não a repreendeu. Num instante ela soltou o fio
entrelaçado na trança de Sherazade. As irmãs se entreolharam enquanto Irsa
fazia um colar com o fio para colocar o anel de Sherazade.
Sem dizer nada, Irsa amarrou o colar no pescoço de Sherazade e escondeu o anel
dentro da qamis dela.
— Sem mais segredos.
Alguns segredos são mais seguros atrás de fechaduras e cadeados. Sherazade concordou com a irmã, as palavras de Khalid sendo sussuradas em seus ouvidos. Não como um aviso. Apenas um lembrete. Ela faria o que fosse preciso para que sua família permanecesse a salvo.
Até mentir para a própria irmã.
— O que quer saber?
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