Leia o primeiro capítulo da continuação de "A Rainha Vermelha"

By Helen Martins - 1/17/2016 08:00:00 AM

Enquanto “Espada de Vidro”, o segundo volume da série A Rainha Vermelha, escrita por Victoria Aveyard, não chega às livrarias, a editora Seguinte lançou na última semana o livro Coroa Cruel com vários contos.

Em Coroa Cruel os leitores podem conhecer um pouco mais da história de duas mulheres em lados opostos da rebelião: a rainha Coriane e Diana Farley (Uma das líderes da Guarda Escarlate), o livro também possui o primeiro capítulo de Espada de Vidro.

Espada de vidro será lançado no Brasil dia 12 de fevereiro. Leia abaixo o primeiro capítulo da sequência, se você ainda não leu A Rainha Vermelha é aconselhável não ler o texto abaixo.

Espada de vidro - Capítulo Um


Estremeço. Ela me deu um pano limpo, mas ainda tinha cheiro de sangue. Não deveria me importar com isso. Já tenho sangue pela roupa inteira. O vermelho é meu, claro. O prateado pertence a muitos outros. Evangeline, Ptolemus, o lorde ninfoide… todos que tentaram me matar na arena. Imagino que parte desse sangue também é de Cal. Ele sangrou muito sobre a areia, todo cortado e arranhado por nossos potenciais carrascos.

Agora Cal está sentado na minha frente, observando os próprios pés, deixando as feridas começarem o lento processo de cicatrização. Dou uma olhada num dos muitos cortes no meu braço, provavelmente feito por Evangeline. Ainda fresco, fundo o suficiente para deixar uma marca. Parte de mim se alegra ao pensar nisto: esta incisão irregular não vai desaparecer magicamente sob as mãos frias de um curandeiro. Cal e eu não estamos mais no mundo prateado, e não há ninguém para simplesmente apagar nossas cicatrizes merecidas. Nós escapamos. Eu escapei, pelo menos. As correntes de Cal são um lembrete concreto de sua condição de prisioneiro.
 Farley cutuca meu braço, e a delicadeza de seu toque me surpreende.

 — Esconda o rosto, garota elétrica. É o que estão procurando.

Pela primeira vez, faço o que mandam. Os outros seguem meu exemplo e cobrem a boca e o nariz com um tecido vermelho. O rosto de Cal é o último a ser coberto. Ele não reage quando Farley dá um nó no disfarce dele, deixando-o parecido com um de nós.

Se ao menos ele fosse um de nós… Uma vibração elétrica energiza meu corpo e me lembra que estou no subtrem, pulsando e chiando. Inexorável, ele nos leva adiante, para uma cidade que um dia foi um santuário. O trem dispara e grita sobre os velhos trilhos como um lépido prateado correndo em campo aberto. Ouço o metal faiscar, sinto-o no fundo dos ossos, onde uma dor fria se instala. Minha fúria, minha força na arena parecem lembranças distantes, que deixaram para trás apenas dor e medo. Mal posso imaginar o que Cal está pensando. Ele perdeu tudo, tudo que amava na vida: um pai, um irmão, um reino…

Como ele faz para suportar, para permanecer imóvel a não ser pelo balanço do trem? Não sei. Ninguém precisa me dizer o motivo da pressa. Farley e seus guardas, tensos como uma corda esticada, são o suficiente para eu entender. Ainda estamos fugindo.
Maven já passou por este caminho antes, e passará de novo. Desta vez, com a fúria dos seus soldados, sua mãe e sua nova coroa. Ontem ele era um príncipe; hoje é o rei. Pensei que fosse meu amigo, meu noivo. Agora sei a verdade. Confiei nele um dia. Agora sei que devo odiá-lo, temê-lo. Por uma coroa, ele ajudou a matar o próprio pai e incriminou o irmão pelo assassinato. Ele sabe que a radiação ao redor da cidade em ruínas é uma mentira, um truque; e sabe para onde o trem vai. O santuário construído por Farley não é mais seguro, não para nós. Não para você. Talvez já estejamos correndo em direção a uma armadilha. Um braço me envolve com força ao perceber meu desconforto. Shade. Ainda não consigo acreditar que meu irmão está aqui, vivo — e, ainda mais estranho, igual a mim. Vermelho e prateado, e mais forte que ambos. — Não vou deixar pegarem você de novo — ele sussurra tão baixo que quase não consigo escutar. Imagino que lealdade a qualquer coisa que não seja a Guarda Escarlate não seja permitida, ainda que se trate de um familiar. — Prometo.

A presença dele me acalma, me faz voltar no tempo. Até uma primavera chuvosa, antes de ele ser recrutado, quando ainda podíamos fingir ser crianças. Não existia nada além da lama, do povoado e do nosso hábito idiota de ignorar o futuro. Agora só consigo pensar no futuro, só consigo me perguntar a que caminhos sombrios meus atos vão nos levar.

— O que vamos fazer agora? — Minha pergunta é dirigida a Farley, mas meus olhos encontram Kilorn. Ele está bem atrás dela, um guardião obediente, com o queixo rígido e ataduras ensanguentadas. E pensar que ele era aprendiz de pescador não faz muito tempo. Assim como Shade, ele parece deslocado, um fantasma de uma época anterior a tudo isto.

— Sempre há para onde correr — Farley responde, mais concentrada em Cal do que em qualquer outra coisa. Ela fica à espera de que ele lute, resista, mas ele não faz nada disso. — E não desgrude dela — Farley diz para Shade depois de um longo momento. Meu irmão assente e sinto a palma da sua mão pesar mais no meu ombro. — Não podemos perdê-la.

Não sou general nem estrategista, mas o raciocínio dela é claro. Sou a menininha elétrica — eletricidade viva, relâmpago em forma humana. As pessoas sabem meu nome, conhecem meu rosto e meus poderes. Sou valiosa, sou poderosa, e Maven fará qualquer coisa para me impedir de contra-atacar. Como meu irmão pode me proteger da perversão do novo rei — mesmo sendo igual a mim, mesmo sendo a coisa mais rápida que já vi —, não sei. Mas preciso acreditar, ainda que pareça um milagre. Afinal, tenho visto tantas coisas impossíveis. Outra fuga seria só mais uma.

Ferrolhos de armas deslizam e travam com um clique que ecoa no fundo do trem à medida que a guarda se prepara. Kilorn se posiciona perto de mim, segurando firme o rifle atravessado no seu peito. Ele olha para baixo com uma expressão suave. Tenta dar um sorrisinho para me fazer rir, mas seus olhos verdes e brilhantes estão sérios e temerosos.

Em contrapartida, Cal está sentado em silêncio, quase em paz. Embora seja quem mais tem motivos para temer — acorrentado, cercado de inimigos, caçado pelo próprio irmão —, ele parece sereno. Não estou surpresa. Ele é um soldado de nascença e criação.

Guerra é uma coisa que ele entende, e com certeza estamos em guerra agora.

 — Espero que vocês não estejam pensando em lutar — ele diz, falando pela primeira vez em muito tempo. Seus olhos estão fixos em mim, mas suas palavras provocam Farley. — Espero que planejem fugir.

— Poupe o fôlego, prateado. — Ela endireita os ombros. — Sei o que temos de fazer.

— Ele também sabe. — Não consigo segurar as palavras.

Farley lança um olhar ardente para mim, mas já suportei pior. Nem estremeço.

— Cal sabe como eles lutam — continuo. — Sabe o que vão fazer para nos impedir. Use-o.

Qual é a sensação de ser usada? Ele cuspiu essas palavras na minha cara quando estávamos na prisão debaixo do Ossário e tive vontade de morrer. Agora quase não dói. Ela não fala nada, e isso basta para Cal:

— Vão vir com os Dragões — ele diz, sombrio.

 — Como se existissem! — Kilorn ri alto. — São jatos — Cal diz com o olhar brilhando de desgosto. — Asas laranja, fuselagem prateada, um único piloto, fácil de manobrar, perfeito para ataques urbanos. Cada um carrega quatro mísseis. Se multiplicarmos por um esquadrão, são quarenta e oito mísseis de que vocês têm que correr, além da munição leve. Conseguem lidar com isso? — A resposta é apenas o silêncio. Não, não conseguimos. — E os Dragões são a menor das nossas preocupações. Eles só vão circular, defender o perímetro, nos manter no lugar até as tropas terrestres chegarem. — Ele baixa os olhos, pensando rápido. Está se perguntando o que faria se estivesse do outro lado, se fosse o rei em vez de Maven. — Vão nos cercar e apresentar seus termos. Mare e eu em troca de deixar vocês escaparem. Outro sacrifício. Devagar, respiro fundo. Esta manhã, ontem, antes de toda esta loucura, eu teria ficado feliz de me entregar para salvar apenas Kilorn e meu irmão. Mas agora… Agora sei que sou especial. Agora tenho outros para proteger. Agora não podem me perder.

— Não podemos concordar com isso — digo. Uma verdade amarga. O olhar de Kilorn pesa sobre mim, mas não o encaro. Não conseguiria digerir seu julgamento.
Cal não é tão duro quanto eu. Ele acena com a cabeça, concordando comigo.

— O rei não acha que vamos ceder — ele comenta. — Os jatos vão derrubar as ruínas sobre nós, e o resto vai varrer os sobreviventes. Será um pouco mais do que um massacre.

Farley é orgulhosa, até quando está em um beco sem saída terrível, como agora.

— O que você sugere? — ela pergunta, se inclinando sobre ele. As palavras dela jorram desdém. — Rendição total?

— Maven ainda mataria você. Seja em uma cela ou no campo de batalha, ele não vai deixar nenhum de nós viver — Cal diz, com uma expressão de nojo em seu rosto.

— Então é melhor morrer lutando. — A voz de Kilorn soa mais forte do que deveria, mas seus dedos tremem. Ele parece disposto a fazer tudo pela causa como o resto dos rebeldes, mas meu amigo ainda tem medo. Ainda é um garoto com não mais de dezoito anos, com muito pelo que viver e muito pouco pelo que morrer.

Cal desdenha da declaração forçada, mas corajosa de Kilorn, apesar de não dizer mais nada. Ele sabe que uma descrição gráfica da nossa morte iminente não vai ajudar ninguém.

Farley não compartilha de seu sentimento e despreza a opinião dos dois com um gesto. Atrás de mim, meu irmão parece tão determinado quanto ela.

 Eles sabem alguma coisa que não sabemos, alguma coisa que não vão dizer ainda. Maven ensinou a todos nós o preço de confiar nas pessoas erradas.

— Não somos nós que vamos morrer hoje. — É tudo o que ela diz antes de marchar para a frente do trem. As botas dela contra o assoalho metálico soa como marteladas, cada passo um golpe de determinação e teimosia.

 Percebo o trem desacelerar antes mesmo de sentir. A eletricidade diminui, enfraquece, à medida que deslizamos para dentro da estação. Talvez encontremos no alto do céu uma neblina branca ou os jatos de asas laranja, não sei. Os outros parecem não se importar e saem do trem com uma intenção clara. Em seu silêncio, a guarda armada e mascarada se assemelha a soldados, mas eu sei a verdade. Não são páreo para o que virá.

 — Prepare-se — Cal sussurra no meu ouvido, e sua voz me dá calafrios. Lembro dos dias que já passaram, da dança sob o luar. — Lembre-se de como você é forte.

 Kilorn abre caminho para o meu lado com os ombros e me separa de Cal antes que eu possa dizer que a minha força e o meu poder são tudo de que eu ainda tenho certeza. A eletricidade nas minhas veias talvez seja a única coisa em que confio neste mundo.

Quero acreditar na Guarda Escarlate e, claro, em Shade e Kilorn, mas não consigo, não depois da confusão que a minha confiança, a minha cegueira em relação a Maven nos meteu. E Cal está completamente fora de questão. É um prisioneiro, um prateado, o inimigo que nos trairia se pudesse — se tivesse outro lugar para onde fugir.

Mesmo assim, por algum motivo, sinto uma ligação com ele. Lembro do garoto sobrecarregado que me deu uma moeda de prata quando eu não era nada. Com aquele único gesto, ele mudou o meu futuro e destruiu o próprio.

 E temos uma aliança — instável, forjada em sangue e traição. Estamos conectados, unidos contra Maven, contra todos que nos enganaram, contra o mundo prestes a se despedaçar.

O silêncio nos espera. A neblina cinzenta e úmida paira sobre as ruínas de Naercey, trazendo o céu tão para baixo que eu poderia tocá-lo. Faz frio, o frio do outono, a estação da mudança e da morte. Nada assombra os céus ainda, nenhum jato para chover destruição sobre uma cidade já destruída. Farley impõe um ritmo acelerado e segue na frente desde os trilhos até a avenida larga e abandonada. Os escombros abrem-se como um cânion, mais cinzentos e arrasados do que me lembrava.

Marchamos pela rua em direção ao leste, rumo à orla encoberta. As estruturas altas, semidesmoronadas, inclinam-se sobre nós; suas janelas são como olhos que nos observam passar. Os prateados poderiam estar à nossa espera dentro de algum buraco, debaixo de arcos ensombrecidos, prontos para matar a Guarda Escarlate. Maven poderia me forçar a assisti-lo eliminar os rebeldes um a um. Ele não me daria o luxo de uma morte rápida e indolor. Ou pior, penso. Ele não me deixaria sequer morrer.

Esse pensamento faz meu sangue gelar como o toque de um calafrio prateado. Por mais que Maven tenha mentido para mim, ainda conheço um pedacinho do coração dele. Lembro dele me agarrando através das barras da cela, me segurando com dedos trêmulos. E lembro do nome que ele carrega, o nome que me faz pensar que ainda há um coração batendo dentro dele. Seu nome era Thomas, e eu o vi morrer. Ele não conseguiu salvar aquele garoto. Mas pode me salvar, da sua própria maneira perversa. Não. Nunca vou lhe dar essa satisfação. Prefiro morrer.

Mas, por mais que eu tente, não consigo esquecer a sombra que pensei que ele fosse, o príncipe perdido e esquecido. Queria que aquela pessoa fosse real. Queria que ele existisse em algum lugar além das minhas lembranças.

As ruínas de Naercey ecoam de um jeito estranho, mais silenciosas do que deveriam. Então me assusto ao perceber por quê. Os refugiados foram embora. A mulher que varria os montes de cinzas, as crianças que se escondiam nas tubulações, as sombras dos meus irmãos e irmãs vermelhos: todos fugiram. Não sobrou ninguém além de nós.

— Você pode pensar o que quiser de Farley, mas ela não é estúpida — Shade responde antes de eu ter a chance de perguntar. — Deu ordem para todos baterem em retirada ontem à noite, depois de escapar de Archeon. Ela pensou que você ou Maven falariam sob tortura.

Ela estava errada. Não era preciso torturar Maven. Ele forneceu as informações de livre e espontânea vontade. Abriu a mente para a mãe e a deixou revirar tudo o que tinha visto. O subtrem, a cidade secreta, a lista. Era tudo dela agora, assim como ele sempre foi.

A fileira de soldados da Guarda Escarlate estende-se atrás de nós, um bando desordenado de homens e mulheres armados. Kilorn marcha no meu encalço, o olhar centrado, enquanto Farley lidera. Dois soldados corpulentos forçam Cal a seguir os passos dela de perto, apertando bem os braços dele. Os cachecóis vermelhos os fazem parecer um pesadelo encarnado. Mas restam muito poucos de nós agora, talvez trinta, todos caminhando feridos. Tão poucos sobreviveram…

— Não temos gente suficiente para continuar com a rebelião, ainda que a gente escape de novo — cochicho para meu irmão. A neblina abafa minha voz, mas ele me escuta mesmo assim.

O canto da boca dele se contrai, como se quisesse sorrir.

— Isso não é preocupação sua.

 Antes que eu pudesse insistir no assunto, o soldado na nossa frente para. Não é o único. Na frente da fila, Farley ergue o punho e crava os olhos no céu cinzento. Os demais imitam o gesto e procuram o que não conseguimos enxergar. Apenas Cal continua a olhar para o chão. Ele já sabe qual vai ser nosso destino.

Um grito distante, inumano, desce através da névoa. É um som mecânico e constante, circulando lá no alto. E não está sozinho. Doze sombras em forma de flecha disparam no céu; suas asas laranja cortam uma nuvem atrás da outra. Nunca tinha visto um jato direito, não tão perto ou sem o manto da noite, então não consigo evitar que meu queixo caia quando consigo avistá-los. Farley berra ordens para a Guarda, mas não a escuto. Estou concentrada demais em observar o céu, em assistir à morte alada traçar um arco sobre nossas cabeças. Como a moto de Cal, as máquinas voadoras são lindas, feitas de metal e vidro inacreditavelmente curvados. Imagino que um magnetron tenha algo a ver com a fabricação — de que outra maneira metal poderia voar? Motores azulados faíscam sob as asas, um indício de eletricidade. Mal sinto a pontada; é como um suspiro contra minha pele, longe demais para que eu possa afetá-los. Só posso observar — horrorizada.

Eles chiam e giram em torno da ilha de Naercey sem jamais quebrar a formação circular. Quase sou capaz de fingir que são inofensivos, nada além de pássaros curiosos que vieram ver os destroços de uma rebelião. Então um dardo de metal cinza dispara sobre nós deixando uma trilha de fumaça, movendo-se tão rápido que é quase invisível. Ele colide contra um prédio no fim da avenida e desaparece dentro de uma janela quebrada. Uma flor vermelho-alaranjada explode menos de um segundo depois, destruindo todo o andar de um edifício já prestes a desmoronar. Ele se despedaça e despenca, as fundações milenares partindo como palitos de dente. A estrutura inteira pende e cai tão devagar que me faz duvidar do que estou vendo. Quando atinge a rua, bloqueando o caminho à nossa frente, sinto o tremor no fundo do peito. Uma nuvem de fumaça e poeira nos alcança, mas não me encolho. É preciso mais do que isso para me assustar agora.

Em meio à névoa cinza e marrom, Cal permanece de pé comigo, apesar de seus captores terem se abaixado. Nossos olhos se encontram por um momento, e os ombros dele caem. É o único sinal de derrota que ele me deixará ver.

Farley se agarra ao guarda mais próximo e se apoia nele para levantar.

 — Se espalhem! — grita, apontando para os becos ao nosso redor. — Para o norte, para os túneis! — Ela aponta para seus tenentes enquanto fala, indicando para onde devem ir.

— Shade, para o lado do parque!

Meu irmão assente; sabe o que ela quer dizer. Outro míssil desaba contra um prédio próximo e abafa a voz de Farley. Mas é fácil distinguir o que ela grita.
Corram.

Parte de mim quer se defender, resistir, lutar. Meus raios roxo-claros com certeza farão de mim um alvo e desviarão os jatos dos rebeldes fugitivos. Talvez eu leve até um ou dois aviões comigo. Mas isso não pode acontecer. Sou mais valiosa do que o resto, do que máscaras vermelhas e ataduras. Shade e eu temos que sobreviver — se não pela causa, ao menos pelos outros. Pela lista de centenas como nós — anomalias híbridas, bizarras, vermelho-prateados impossíveis de existir —, que sem dúvida vão morrer se falharmos.

Shade sabe disso tanto quanto eu. Ele agarra meu braço, apertando tanto que até machuca. Chega a ser quase fácil correr ao lado dele, me deixar guiar para longe daquela avenida larga, para o emaranhado de cinza e verde das árvores transbordando rua adentro. Quanto mais seguimos, mais densas elas se tornam, retorcidas e unidas como dedos deformados. Mil anos de abandono transformaram este pequeno lote numa selva mortal. Ela nos protege do céu, até ouvirmos apenas os jatos, circulando cada vez mais perto. Kilorn não fica para trás. Por um instante, finjo que estamos no nosso vilarejo, zanzando por Palafitas à procura de diversão e encrenca.

Parece que só encontramos encrenca.

Quando Shade afunda os calcanhares no chão e derrapa até parar, deixando marcas na terra, eu enfim tenho a chance de olhar ao redor. Kilorn para ao nosso lado, seu rifle apontado — em vão — para o céu, mas ninguém mais nos segue. Já não consigo sequer ver a rua ou os panos vermelhos fugindo entre as ruínas.

Meu irmão tenta enxergar por entre os ramos das árvores; observa e espera os jatos voarem para longe.

— Aonde estamos indo? — pergunto para ele, sem fôlego.

Kilorn responde em seu lugar.

— Para o rio — ele diz. — E então para o oceano. Você pode nos levar?

 Kilorn olha para as mãos de Shade como se os poderes dele estivessem estampados na carne. Mas a força do meu irmão está enterrada, assim como a minha; é invisível até ele decidir revelá-la.

 Shade nega com a cabeça.

— Não com um salto; é longe demais. Prefiro correr e poupar energia. — Seus olhos escurecem antes de ele continuar: — Até a gente precisar de verdade.

Concordo com a cabeça. Sei por experiência própria o que é fadiga de poder, sentir o cansaço nos ossos, mal conseguir andar, muito menos lutar.

— Para onde estão levando Cal?

Minha pergunta faz Kilorn estremecer.

— Que se dane. Não ligo.

— Pois deveria — rebato, apesar de a minha voz tremer de hesitação. Não, ele não deveria. Nem você. Se o príncipe for embora, que seja. — Ele pode nos ajudar a sair dessa. Pode lutar com a gente.

— Ele vai fugir ou nos matar assim que tiver a chance — Kilorn dispara, baixando o cachecol para mostrar sua careta de raiva.

Imagino o fogo de Cal queimando tudo no caminho, de metal a carne.

— Ele já poderia ter matado você — digo. Não é exagero, e Kilorn sabe disso.

— Por algum motivo pensei que vocês estariam maduros o suficiente para acabar com essa implicância — Shade diz, se colocando entre nós. — Que ingenuidade a minha.

Kilorn força um pedido de desculpas por entre os dentes, mas eu não. Meu foco está nos jatos, em deixar seus corações elétricos palpitarem contra o meu. Eles enfraquecem a cada segundo, distanciando-se mais e mais.

 — Eles estão voando para longe de nós — aviso. — Se é para irmos, tem que ser agora. Tanto meu irmão quanto Kilorn me lançam um olhar estranho, mas nenhum dos dois discute.

 — Por aqui — Shade diz, apontando para as árvores. Uma trilha pequena, quase invisível, serpenteia por entre elas; a poeira foi varrida para revelar as pedras e o asfalto embaixo. De novo, Shade segura meu braço. Kilorn abre caminho rapidamente e o seguimos no mesmo ritmo.

Os galhos nos arranham, cada vez mais encurvados até ficar impossível correr lado a lado. Mas em vez de me soltar, Shade me segura mais forte. Então percebo que ele não está me apertando. É o ar, o mundo. Tudo junto ao mesmo tempo por um segundo sufocante e escuro. E, num piscar de olhos, estamos do outro lado das árvores, olhando para trás, vendo Kilorn emergir da mata cinzenta.

— Mas ele estava na frente… — solto em voz alta olhando de Shade para a trilha.

Cruzamos para o meio da rua, com o céu e a fumaça pairando acima. — Você… Shade abre um sorriso, o que parece inadequado diante do grito longínquo dos jatos.

— Digamos que… saltei. Se eu estiver te segurando, você pode vir junto — ele diz antes de nos apressar na direção do próximo beco.

Meu coração dispara ao perceber que acabei de ser teletransportada. Quase esqueço nossa situação complicada. Os jatos logo refrescam minha memória. Outro míssil explode ao norte; um prédio vai ao chão e faz a terra tremer. O pó avança sobre o beco numa onda e nos tinge de mais uma camada de cinza. Estou tão acostumada com fumaça e fogo agora que mal sinto o cheiro, mesmo quando as cinzas começam a cair como neve. Deixamos nossas pegadas nelas. Talvez sejam nossas últimas marcas em vida.

Shade sabe para onde ir e como correr. Kilorn não tem dificuldade em nos acompanhar, apesar do peso do rifle. Retornamos à avenida. A leste, um feixe de luz do sol irrompe por entre o pó e a sujeira, trazendo consigo uma lufada salgada do ar da costa. A oeste, o primeiro prédio que desmoronou é um gigante caído que bloqueia qualquer retirada para o trem. Vidro quebrado, esqueletos de ferro das construções e placas estranhas de um branco desbotado erguem-se à nossa volta — um palácio em ruínas.

O que era isto? Me pergunto vagamente. Julian saberia. Dói só de pensar no nome dele, e faço um esforço para afastar a sensação.

Um punhado de mascarados vermelhos atravessa o ar repleto de cinzas. Procuro uma silhueta familiar, mas nenhum sinal de Cal, o que me causa um medo terrível.

— Não vou embora sem ele.

Shade não se dá ao trabalho de perguntar de quem estou falando. Já sabe.

— O príncipe vai vir com a gente. Dou a minha palavra.

— Não confio na sua palavra. — Minha resposta corta fundo.

Shade é um soldado. Sua vida foi tudo menos fácil, e ele não é estranho à dor. Ainda assim, minha declaração o magoa profundamente. Vejo no seu rosto.

Peço desculpas mais tarde, digo a mim mesma.

Se o mais tarde chegar.


Outro míssil é disparado do alto e detona algumas ruas à frente. O trovão distante de uma explosão não encobre o ruído mais áspero e assustador que se ergue ao nosso redor. O ritmo de mil pés marchando.

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